A TV Globo amarga um desgaste
histórico. Nenhum executivo da emissora chega a temer pela não-renovação das
cinco concessões que expiram nesta sexta-feira (5). Mas nem essa convicção
atenua a crise de uma Globo que: 1) perde audiência sem parar; 2) é cada vez
mais contestada por movimentos da sociedade civil; e 3) já não ostenta tanto
poder e credibilidade diante da opinião pública.
Não dá para dizer que, em
curto prazo, a hegemonia da família Marinho na televisão brasileira esteja sob
risco. Até a Record – que desbancou o SBT do posto de principal concorrente da
Globo – assume que precisa de pelo menos cinco anos para alcançar a liderança
de audiência. Ainda assim, dia após dia, estatística a estatística, a Globo
decai.
Essa constatação fica
explícita na Grande São Paulo – área mais disputada pelas emissoras, onde cada
ponto abrange 55 mil domicílios. A TV Globo encerrou o mês de setembro com
vantagem de 11 pontos sobre a Record (18 x sete). Em relação a setembro de
2006, esses números revelam que audiência global despencou 11,8%, enquanto a
Record ganhou 50,2%.
A guerra entre os dois canais
se acirrou com a inauguração da Record News, na última semana, em cerimônia
realizada em São Paulo. Visivelmente preocupada, a Globo apelou para o governo
federal na tentativa de impedir a estréia da emissora de notícias. Evandro
Guimarães, vice-presidente de Relações Institucionais das Organizações Globo,
teve audiência com o ministro das Comunicações, Hélio Costa, e com outras
autoridades ligadas ao Palácio do Planalto. Sua missão era impedir que a Record
News entrasse no ar devido a "ilegalidades". Fracassou.
O vexame maior se deu no dia
da cerimônia da inauguração. Segundo informou Paulo Henrique Amorim no site
Conversa Afiada, "a Globo fez uma pressão violentíssima, de última hora,
sobre o Palácio do Planalto, para impedir que o Presidente Lula fosse à festa
de lançamento da Record". As armas da Globo: "detalhes técnicos
minuciosos, que continha o argumento de que a lei impede uma rede de ter dois
canais na mesma área".
Como se viu horas depois, o
ataque final foi infrutífero, e o presidente da República inaugurou a emissora.
As "pressões de bastidores" perderam o peso que tinham nos tempos em
que a Globo era capaz de arquitetar resultados eleitorais e guiar ações do
Congresso.
Programas em baixa
São visíveis os sinais de que
o público depende menos da Globo para se informar e se distrair. A debandada
atinge novelas (carro-chefe da audiência global), futebol (sobretudo seleção
brasileira), seriados, atrações semanais (como Linha Direta, Fantástico e
Esporte Espetacular) e a programação da manhã.
Do primeiro ao último
capítulo, Paraíso Tropical – que foi ao ar até sábado (29/9) – teve média geral
de 42,8 pontos. Entre as "novelas da 8" que a emissora exibiu nesta
década, trata-se do segundo pior desempenho – o típico "fiasco de
público". Não atingiu a meta mínima de 45 pontos, estipulada pela Globo.
Mais inferior ainda foi a sucessora, Duas Caras, que teve a pior estréia da
década, com 40,3 pontos no primeiro capítulo – e caiu mais quatro pontos no
capítulo seguinte.
"A comparação das
audiências regionais da Globo evidencia que a novela da oito, líder na média
nacional e nas principais capitais, não é uma unanimidade", explicou
Daniel Castro na Folha de S.Paulo. Segundo o jornalista, Paraíso Tropical teve
"rejeição nas cidades do interior" – situação com que poucas vezes a
Globo teve de lidar.
Malhação é outro exemplo de
programa global em queda livre. Na média, foram 32 pontos em 2004, 31 em 2005,
29 em 2006 e apenas 25 em 2007 (janeiro a setembro). O despencar da atração
levou a Globo a antecipar o final da temporada de janeiro para novembro.
Também o Fantástico, líder de
audiência aos domingos, decresce programa a programa – já caiu cinco
pontos de agosto a setembro. O cenário mudou. Reportagens "especiais"
foram feitas na reta final da novela das 8. Nada resolveu. "Deve haver uma
soma de fatores influenciando esse relativo desinteresse do público",
escreveu a crítica de TV Bia Abramo. "Mas será que para isso também não
concorre simplesmente um envelhecimento fatal da fórmula?"
E aí está o segredo da TV
Record. A emissora do bispo Edir Macedo chupa o "padrão Globo de
qualidade", seja no jornalismo, seja na teledramaturgia. Mas tempera isso
com ousadia e ritmo próprios, aproximando-se do interesse dos jovens
espectadores.
A reação
Uma verdade: a Globo, no
cômputo geral, ainda tem mais público que a soma de Record e SBT. A diferença,
no entanto, vai diminuindo. Em 2000, metade dos espectadores sintonizava a
Globo. Atualmente, sua audiência não passa de 43% – e a emissora já começa a
correr para reverter o declínio.
No começo de setembro, mandou
a anunciantes um documento de 14 páginas exclamando uma "destacada
liderança em todo o Brasil". Segundo Daniel Castro, a iniciativa foi
interpretada no mercado "como uma demonstração da Globo de preocupação com
o marketing e com o crescimento de audiência e comercial da Record".
Uma semana depois, o 7º
Encontro Globo de Criação não se restringiu a seu tema habitual – o estudo de
programas novos para especiais de fim de ano. O principal ponto em debate foi
justamente a audiência perdida para outras emissoras, outras mídias e até para
a apatia do espectador.
A disputa pelo público
matutino é a prova maior do desprestígio da Globo, ameaçada pelos desenhos do
SBT e pelo interessante programa Hoje em Dia, da Record. A emissora carioca já
patinou várias vezes num terceiro lugar no período da manhã, expondo a
decadência de estrelas como Ana Maria Braga e Xuxa.
Quem dera fosse só de manhã.
Na noite de 12 de junho deste ano, a Globo estreou a esperada microssérie A
Pedra do Reino – uma das apostas da emissora, e um sucesso de crítica. Ficou novamente
atrás da Record (22 pontos com O Aprendiz) e do SBT (16 com o filme Lara Croft
– A Origem da Vida). A microssérie registrou 14 pontos.
Sob ataques
O desgaste da maior emissora
do país se reflete no Congresso Nacional e nos movimentos sociais. Lá como cá,
as manifestações e os discursos anti-Globo se multiplicam. Em defesa do canal,
pode-se dizer que houve protestos contra outros veículos, como o ato do
Movimento Sem-Mídia à frente da Folha de S.Paulo e da UJS (União da Juventude
Socialista) diante da Editora Abril. A Globo, ainda, assim, "lidera"
o ranking da indignação.
Em 19 de setembro, o deputado
federal Fernando Ferro (PT-PE) foi à tribuna da Câmara e, de forma irônica,
propôs a criação do Partido da Imprensa – com Arnaldo Jabor de presidente,
Miriam Leitão como secretária-geral e Diogo Mainardi na tesouraria. O mesmo
parlamentar voltou ao plenário neste mês de outubro e acusou o
diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo, Ali Kamel, de
"falsificador" de informações.
As queixas generalizadas
contra a emissora da família Marinho culminam, nesta sexta-feira, em
manifestações lideradas pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) – A
Jornada Nacional de Lutas pela Democratização dos Meios de Comunicação. Com
eventos marcados em 15 capitais, entidades como CUT, UNE e MST exigirão mais
rigor e controle público na renovação de concessões de rádio e TV.
São as grandes redes – Globo à
frente – que estão no centro da contestação. Uma manifestação cultural chamada
Globo Mente tomará o Rio de Janeiro. No Recôncavo Baiano e no Recife,
comunidades quilombolas sairão às ruas para denunciar as difamações promovidas
pela emissora. Os quilombolas da Bahia incentivarão o povo a não ver a
programação da Globo durante o dia.
É difícil que as cinco
afiliadas globais percam sua licença. Um decreto de 1963 permite a renovação
automática das concessões enquanto o Congresso não aprecia a questão. Mesmo que
o caso chegue lá, dois quintos do Congresso Nacional precisam aprovar a
não-renovação em votação nominal. Mas, legislação à parte, a confiabilidade da
TV Globo nunca esteve tão à prova.
* André Cintra é jornalista